Desastre italiano no futebol é reflexo de deterioração econômica e gerencial no país

  • Por Cassiano Gobbet
  • 14/11/2017 10h37 - Atualizado em 14/11/2017 10h48
EFE/DANIEL DAL ZENNARO

Para se entender a eliminação da Itália na Copa do Mundo – uma tragédia esportiva, mas ainda assim anos-luz do desastre brasileiro em 2014 – não adianta você ir buscar escalações, contusões, convocados e assuntos que geralmente jornalistas esportivos buscam. O desastre italiano é um reflexo do país e não há chance de mudança num curto espaço de tempo.

Numa reflexão feita numa linha do tempo, o início do parto do crash em San Siro foi justamente no seu maior sucesso recente, a vitória na Copa de 2006. Ali, uma geração de jogadores excepcionais conquistou um título depois de chegar à Copa como azarão. Contudo, se em campo nomes como Pirlo, Buffon, Chellini, Totti e Cannavaro desenhavam um esboço claro do DNA italiano, fora de campo, um golpe de estado foi dado pelo establishment para se manter no poder.

Semanas antes da Copa, a Itália tinha sido atingida por uma bomba nuclear. O escândalo do Calciocaos revelou uma vasta rede de favores comandada pelo diretor geral da Juventus, Luciano Moggi. O dirigente não controlava só arbitragens a favor do time de Turim, mas também mexia nos resultados de outras partidas além de decidir se contratações de outros clubes seriam feitas, encaixava homens de sua confiança na gerência de outros clubes e literalmente determinava quem seria campeão em grande medida.

O esquema explicava em parte por que o Milan e outros clubes venciam tão pouco na Itália (e faziam campanhas europeias até melhores que a Juventus), por que a Inter gastava como milionária e jogava como time de quinta e por que Lazio e Roma só conseguiram seus títulos quando pegaram o tsunami de dinheiro vindo da entrada de ambas na Bolsa de Valores de Milão. A Juventus foi rebaixada e o futebol passou um período de alguns anos sem Moggi aparecendo diretamente, mas ele nunca deixou de estar lá. Através de seu filho, o agente Alessandro Moggi, o cartola manteve-se em posição de observação tramando seu retorno.

A guinada que o futebol italiano deveria ter dado após o escândalo foi suspensa quando a Azzurra chegou em Roma com a Copa do Mundo, com os cartolas de lá, como aqui, alegando que a gestão italiana era bem-sucedida e que não se devia mexer em time que está ganhando. Assim, praticamente todos os dirigentes envolvidos no esquema Moggi foram paulatinamente “liberados” da prestação de contas, embora Moggi e outros dois diretores da Juventus terem sido oficialmente afastados. Roma e Inter, as maiores prejudicadas pelo esquema Moggi, tiveram seus anos de vacas gordas, com o pentacampeonato interista sempre com a Roma no seu vácuo. A hegemonia interista foi o preço cobrado por Massimo Moratti, presidente histórico do clube, para concordar em não exigir mudanças radicais, porque as punições pós-escândalo foram somente uma fração do que deveriam ter sido à luz da lei.

Acabou em pizza

Se houve uma pizza na história do esporte italiano, foi a pizza do Calciocaos. Nenhum dirigente foi preso e mesmo os banimentos vitalícios outorgados nas investigações foram anulados sem alarde. Com o jogo melado, as estruturas do futebol italiano não foram reformadas e o campeonato foi sendo degradado. A média de público chegou a se reduzir em 20%, cifra semelhante à queda das receitas de Milan, Juventus e mais uma série de clubes como Lazio, Fiorentina e Parma. Todos os times “tocados” pelo esquema Moggi perderam dinheiro com os anunciantes fugindo de terem seus nomes ligados ao escândalo.

Sem Milan e Juventus investindo, todo o sistema se ressentiu. Os clubes menores como Atalanta, Parma e Bologna viram suas receitas se reduzirem e montaram times piores. os maiores nomes do futebol italiano pararam de ir para a Série A, especialmente com a ascensão econômica da Premier League inglesa, da Bundesliga e da geração excepcional do Barcelona, que levou a um investimento maior também do Real Madrid.

Mas não foi esse o pano de fundo para o naufrágio italiano em San Siro. A federação italiana é gerida por Carlo Tavecchio um conservador falastrão mais famoso pelos seus comentários misóginos e racistas e pela sua ficha corrida do que por talento em qualquer coisa. Político obscuro de uma cidade próxima de Milão, ele já foi condenado à prisão cinco vezes, com crimes indo por falsificação de cartas de crédito e documentos, sonegação fiscal e violação de leis ambientais, num total de quase cinco anos de cadeia – mas nenhuma delas o levou à prisão.

Tavecchio foi levado à presidência da Federcalcio com a ampliação do poder político de Claudio Lotito, presidente da Lazio. Lotito ocupou o espaço político deixado por Moratti e Adriano Galliani, diretor histórico do Milan que viveu seus últimos anos no clube com menos dinheiro para contratações do que times do terceiro e quarto escalões. Não coincidentemente, a Lazio vive hoje seu melhor momento desde a entrada e queda na Bolsa. Seu faturamento, proporcionalmente, aumentou mais do que os dos outros clubes na gestão Tavecchio.

O poderoso chefão

Ainda mais nas sombras, Luciano Moggi recuperou seu poder e hoje age como diretor não-oficial da Juventus. Ele novamente determina que jogadores entram ou não no futebol local, transfere atletas para clubes de sua preferência e acaba com a carreira de inimigos. Todas as condenações que ele sofreu no escândalo de 2006 foram revogadas e num há alguns anos, 7 entre os 20 clubes da Série A tinham diretores de futebol que tinham o tido como padrinho. E nem a entrada de capital estrangeiro mudou o cenário. No finda temporada passada, Marco Fassone, diretor do novo ciclo “chinês” do Milan, fez uma visita reverenciar a Moggi, que oficialmente não tem emprego na Itália. Hoje, o “emprego” do cartola de 79 anos é o de “consultor” do Partizan Tirana, um dos maiores times da “forte” Superliga albanesa.

O último fator clubístico é relacionado ao Milan. O clube que foi assumido por Silvio Berlusconi na década de 80 rebaixado e sem craques foi o maior vencedor italiano desde então Gerações de craques nasceram  foram compradas pelo empresário e posteriormente premiê do país. Nem mesmo a Juventus fazia frente ao time milanês, especialmente no futebol continental. Mas uma sentença judicial basicamente zerou o investimento de Berlusconi.

Ainda na década de 80, a maior editora italiana, a Mondadori, que tem um faturamento anual de quase €2 bilhões, cerca de €7 bi), foi posta à venda e Berlusconi a queria. Para tanto, ele não se absteve de corromper protagonistas da transação e assumir o controle da Mondadori. Um antigo sócio do fundador da Mondadori alegou que tinha a preferência de compra e processou Berlusconi e o grupo Fininvest. Num processo que durou mais de 20 anos (e que esteve “congelado” durante quase todo o período de Berlusconi como premiê), em 2009, a justiça deu uma sentença obrigando o grupo Fininvest a pagar uma multa de de cerca de €750 milhões (cerca de €2.8 bi) à vista. A paulada gerou uma cisão na família Berlusconi, onde os filhos mais velhos do patrono milanista, após uma briga familiar, proibiram que ele investisse dinheiro da família no futebol. Na prática, acabou ali a capacidade do Milan de contratar, o que muito explica os resultados pífios em campo depois do título italiano em 2011.

Sintomas, não causas

Tavecchio, Moggi, Lobito e Galliani, contudo, são sintomas e não a doença. O verdadeiro problema do futebol italiano está nas mazelas da própria Itália. Depois de duas décadas de protagonismo de Berlusconi, o país tem uma economia deteriorada. A produtividade do país é a menor entre as economias mais fortes do continente e com o crescimento estagnado há praticamente uma década, hoje raspando em 0%. O país tinha, até dois anos atrás, o parlamento e gabinete de idades médias mais avançados da Europa.  Toda a legislação trabalhista e previdenciária impedem que a economia volte a ser uma potência e mesmo sua permanência no G7 está em risco.

Em nenhum país, o futebol  se descola da economia. Na Itália do fim dos anos 80, o futebol representava cerca de 2% do PIB, mas essa cifra caiu para menos da metade – e isso porque o PIB diminuiu (hoje está cerca de 30% menor do que  no seu auge de 2008). Na última década, 137 estádios foram construídos na Europa, mas só 3 deles são na Italia. Milan, Inter, Roma, Napoli, Lazio, Fiorentina têm planos engavetados há muitos anos por falta de investidores. O Estado não dá isenções fiscais para aumentar a competitividade, sindicatos pressionam e impedem contratações e demissões mas fluidas. Também ano futebol a produtividade segue em coma.

Hoje todos os jornais italianos pedem a cabeça de Tavecchio de do treinador Giampiero Ventura, um nome medíocre resgatado por Tavecchio para servir de fantoche na pantomima gerencial da Federcalcio, mas lembremos-nos que em 2014, a mesma grita ocorreu, com propostas patéticas como CPIs e estatais para controlar o futebol. Só que –  Luciano Moggi ensina – nada escapa à força da batalha política de bastidores que fizeram os italianos uma referência histórica. Nenhuma reforma vai acontecer enquanto a Federcalcio não for destruída e refeita. Não há políticas esportivas no país, a escola de tática de Coverciano, que já foi referência, hoje é uma piada, os clubes não têm estímulos para treinar jovens (e quando o fazem, vêem empresários levando os melhores para clubes grandes sem nenhuma compensação) e agentes corrompem cartolas às claras, com chegadas e saídas de jogadores completamente sem sentido.

Nenhum fato é tão sintomático da terra arrasada que é o futebol italiano quanto o hexacampeonato da Juventus. A hegemonia do clube é fruto de trabalho duro, mas indiscutivelmente não teria acontecido num cenário que não tivesse as eminências pardas mastigando as entranhas do sistema. Antes de qualquer mudança legal, a Itália precisa promover uma revolução sistêmica, que seja tão profunda quanto possível, mudando do sistema fiscal às legislações trabalhistas e de fluxo de capitais. Dar mais ou menos espaço a jovens nos times da Série A é a ponta do iceberg e até desnecessária (porque o espaço virá sozinho depois de uma reconstrução). Há alguns anos, quando sua última condenação foi revogada, Luciano Moggi gritou na saída do fórum: “Eu venci a todos – todos!”. Ele está certíssimo. Na ópera vivida pelo futebol italiano, somente Moggi foi vitorioso e seu sucesso foi pago por todo o resto

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