Santista de Manaus realiza sonho de conhecer a Vila Belmiro aos 69 anos

  • Por Thiago Navarro/ Jovem Pan
  • 30/03/2017 14h54
Thiago Navarro/Jovem Pan Sr. Olegário conhece a Vila Belmiro aos 69 anos

Das 3.195 pessoas que foram à Vila Belmiro para ver um Santos classificado, com o time reserva, vencer por 3 a 1 o Novorizontino, em jogo tecnicamente fraco, uma delas vivia um dia mais que especial, que contrastava diametralmente com a aparente pouca importância da partida.

“Nunca imaginei que um dia poderia estar na Vila Belmiro”, diz Seu João, emocionado, ao adentrar a Rua Isabel, ainda a um quarteirão do estádio, e visualizar parte dos refletores acesos do centenário e aconchegante Estádio Urbano Caldeira. “Estou nos ares, voando. Há muitos anos eu desejava isso”, descreve, com olhos brilhando, como os do menino pré-adolescente que ouvia o escrete santista comandado por Pelé, Pepe, Coutinho, Mengálvio e companhia desfilando o mágico futebol pelas ondas do rádio, colocado à beira dos campinhos de terra da capital amazonense. O pequeno João se sentia privilegiado naquele início de anos 1960. “Poucos tinham rádio na época”.

Os mesmos olhos juvenis que agora davam mais brilho ao cabelo totalmente branco, como a camisa nova do Santos que recebera dos amigos que o levaram ao estádio, e ao rosto de pele bem conservada pelo favorável clima amazônico e uma vida regrada, de muito esforço como pedreiro, funcionário de indústria da Zona Franca e comerciante, para o sustento dos três filhos. Olegário, como não poderia deixar de ser a um amazonense que hoje vê a vastidão das águas do Rio Negro da varanda de seu sobrado, foi até pescador e descreve com precisão as técnicas de como capturar cada tipo de peixe e lista quais são os seus favoritos, enquanto come um espetinho de carne e bebe um refrigerante, com as pernas trêmulas de ansiedade, em tradicional bar em frente à entrada principal da Vila.

Mas o seu Peixe favorito estava estampado no peito e ainda não tinha entrado em campo. O jogo era sabidamente fraco e a torcida compareceu em baixíssimo número. Não fossem as luzes acesas do cobiçado estádio e algumas dezenas de torcedores com a camisa, nem parecia que era dia de futebol. A recepção ao ônibus dos jogadores (que João acabou não vendo) foi bem mais simples que o tradicional “corredor de fogo” com sinalizadores que a Torcida Jovem costuma encenar quando há partidas de grande relevância. O torcedor ilustre soube que o “mistão” do Santos tinha chegado quando ouviu dois ou três fogos de artifício, ainda de dentro do Memorial das Conquistas, museu que expõe os principais troféus do clube além de imagens de grandes jogadores que fizeram história naquele gramado.

Lembranças

A entrada de R$ 4,00 para visitar o museu que fica dentro da parte lateral da Vila Belmiro já teria valido a visita para sr. João. O time que se gaba de mais ter feito gols na história do futebol tem tantos artilheiros, que nem Neymar, com seus 138 tentos anotados, entra no top-10. Olhando a foto dos dez maiores goleadores com saudosismo (tendo Pelé disparado com 1.091 gols), Sr. João cita Araken Patusca (que jogou nos anos 1920) e Feitiço (que avançou os anos 1930, quase duas décadas antes do nascimento de Olegário em 1948), como raros exemplos de jogadores que seus olhos nem ouvidos viram. “Araken, Feitiço…, esses não alcancei”.

Olegário abraça estátua de Pelé no Memorial das Conquistas

 Já ao ver breve vídeo de gols do Santos nos campeonatos intercontinentais de 1962 e 1963, Olegário recorda o sentimento de acompanhar seu clube ser o primeiro brasileiro a conquistar o mundo. “Esse jogo (Santos 4 x 2 Milan no Maracanã, em 63) me marcou muito. O time (do Santos) era uma máquina.  Nessa época não tinha muito integração com o resto do mundo. Esse Milan também era uma fábrica de craques, mas não resistiu”.

Do mundial de 1962, ele também se lembra. “Esse Benfica era o todo poderoso do mundo. Aquele Eusébio… Brasil tinha perdido antes na Copa”. Talvez a emoção e a integração quase sublime entre passado e presente que vivenciava fez Sr. João se confundir um pouco nas datas. A derrota da seleção nacional (jogo em que Pelé se machucou) para o épico Portugal do artilheiro Eusébio já havia sido “vingado” quatro anos antes no duelo entre os clubes dos respectivos craques.

Finalmente, sr. João Olegário subiu as escadas que dão acesso às cadeiras descobertas da Vila Belmiro. O olhar encantado, agora marejado, voltou. O aposentado rodeava com a vista o chamado pela torcida “templo sagrado do futebol”. João resume: “é um sonho”.

“Tá dando sono”

O que se viu com a bola rolando, no entanto, foi o oposto do sonho. Não havia grandes craques, nem os melhores jogadores do atual elenco, em campo. Mostrando que acompanha fielmente as notícias do clube mesmo à distância, João conhecia a maioria dos jogadores reservas que adentraram a “Vila mais famosa” sob fracos aplausos.

Após o hino nacional emocionante, o time da casa tocava a bola lateralmente, mas não conseguia perfurar a defesa adversária. “Esses caras deveriam aproveitar a oportunidade de jogar pelo Santos”, lamentava João, em um dos raros comentários que fez enquanto assistia, vidrado no campo, à feia partida. Era como se pedisse que os atletas tivessem um pingo da reverência que o santista de Manaus tem por aquele estádio e camisa. A tragédia da primeira ida à Vila parecia desenhada quando, em falha do zagueiro Yuri, o Novorizontino puxou belo contragolpe e fez o primeiro gol que sr. Olegário viu na Vila Belmiro – do time adversário.

Sorte que o Santos alcançou o primeiro gol ainda no primeiro tempo, dando a chance de João ver a rede balançar de perto, dada a posição no estádio em que se encontrava. Pênalti duvidoso bem convertido por Kayke. Sr. João cerra os punhos e abre o sorriso para vibrar mais que a maioria da torcida com o empate ainda insosso. Aos 40 minutos da primeira etapa, assumiu: “tá dando até sono”.

Com o jogo no intervalo, era tempo de admirar as “Sereias da Vila” (‘cheerleaders ‘ que se apresentam no gramado enquanto a bola não rola) e tomar um picolé de coco.

Pelé e Coutinho?

A partida fraca não impedia Sr. João de se divertir junto a seus três novos amigos alvinegros que conheceu na igreja em que seu filho é pastor evangélico em São Paulo e o levaram para realizar o sonho. Olegário fora abençoado com o “manto sagrado” em lugar propício: na Igreja Batista Boas Novas no domingo de manhã anterior.

À espera da boa notícia da virada nesta quarta, João ria enquanto outro torcedor ironizava o estilo “tiki-taka” de jogar do time de Dorival Jr., desde a fileira de trás: “toca pro lado, agora pra trás, agora pro goleiro…”. João ainda ironizou o movimento do corpo que o zagueiro santista fazia para dar um simples passe lateral para o outro zagueiro. “Nego faz até pose, parece até que ele joga bola, faz uma poses bonitas”, brinca.

Com o Novorizontino recuado, os defensores Cléber e Yuri faziam circular a bola sem muita efetividade pela intermediária do campo. O que deu margem para Olegário recordar outra dupla santista, de nível estratosfericamente superior. “Ele (Cléber) e aquele 25 (Yuri) jogaram muito, pareciam Pele e Coutinho fazendo tabela”, ironizou, sem perder a alegria.

Talvez ouvindo a desleal comparação, Rafael Longuine resolver ter pequenos lampejos de Zito, “acordou” para o jogo e deu dois belos passes que resultaram nos gols do “Time da Virada” e garantir o “pé-quente” de seu João Olegário.

Já na madruga desta quinta (30), após viajar por toda a Anchieta comentando sobre os jogos da noite do futebol paulista, a vitória importante na Vila e a experiência inédita, Sr. João é questionado se valeu a pena o passeio, apesar do jogo ruim.

“Valeu, oxi”, decreta, lembrando migalhas do sotaque potiguar (João nasceu em Macau, no Rio Grande do Norte, mas foi levado ainda criança a Manaus, onde fez sua vida). “Não me esqueço nunca”.

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