Torça sem culpa! Croácia tem história muito mais complexa do que recentes discussões; entenda

  • Por Renato Barcellos/Jovem Pan
  • 14/07/2018 12h05 - Atualizado em 14/07/2018 13h21
KHALED ELFIQI/EFE Em um país muito diferente do Brasil, com menos de 30 anos de existência, que viveu anos e anos de guerra, é comum que o sentimento patriota esteja mais aguçado.

A Croácia venceu a Inglaterra na última terça-feira (10) por 2 a 1 e se classificou para sua primeira final de Copa do Mundo, que será contra a França, domingo (15), às 12h. Durante o mundial, veículos de comunicação divulgaram reportagens associando os atletas croatas ao neonazismo, xenofobia e nacionalismo. Por mais que alguns jogadores mostrem comportamentos que colaborem para esse tipo de pensamento, não é possível generalizar a seleção.

Um dos jogadores mais citados pela mídia foi o zagueiro Domagoy Vida, que após vencer a Inglaterra na semifinal, teve um vídeo divulgado em que ele profere as seguintes palavras: “Slava Ukraine”, algo como “Glória à Ucrânia”. O mestre em Ciência Política pela Higher School of Economics de Moscou e pesquisador do Laboratório de Estudos da Ásia da USP, Vicente Giaccaglini Ferraro Jr, explica que a saudação teve uma de suas primeiras menções após a revolução Russa de 1917, momento em que nacionalistas ucranianos tentaram promover a criação de um estado ucraniano independente. Sem sucesso, nacionalistas tentaram novamente a independência durante a Segunda Guerra Mundial, aliando-se aos invasores nazistas contra a União Soviética.

“É nesse momento que o nacionalismo ucraniano, com sua saudação ‘Slava Ukraine’, foi associado ao nazismo. Após a dissolução da União Soviética, alguns grupos ultrarradicais se apropriaram do lema, o que reforçou a associação. Contudo, vale ressaltar que o lema acabou ganhando difusão fora dos círculos mais radicais, principalmente a partir da crise política pela qual a Ucrânia vem passando desde o fim de 2013”, esclareceu Ferraro.

Vida atuou no Dínamo de Kiev, da Ucrânia, por 5 anos. Durante esses período turbulento que o zagueiro viveu no país, certamente foi influenciado pelos acontecimentos locais, principalmente no que se refere em relação com a Rússia, nação que apoia indiretamente grupos separatistas do leste e incorporou a Crimeia, região majoritariamente de etnia russa, ao seu território.

“Quando saudou ‘Slava Ukraine’, Vida provavelmente quis mostrar que está ao lado dos ucranianos nesse conflito indireto com a Rússia, o que já é motivo de polêmica. Mas a controvérsia maior deve-se ao fato de o lema ter ganhado difusão com os colaboradores nazistas na Segunda Guerra e, após a independência, com os ultranacionalistas. É difícil delimitar a fronteira ideológica de seu significado: apoio à soberania ucraniana como nação ou aos grupos de extrema direita?”, questiona Ferraro.

Assim como ocorreu na Ucrânia, nacionalistas croatas se aliaram aos nazistas para obterem a independência da Iugoslávia. Após um breve período como estado fantoche na Segunda Guerra Mundial, lembrado pelo genocídio de minoria sérvias, judias e ciganas, a Croácia voltou a fazer parte da Iugoslávia. “Somente em 1991 é que ela viria a se formar como um estado independente. No entanto, os conflitos étnicos que assolaram a desintegração do estado iugoslavo mancharam o processo de independência das novas repúblicas, com feridas que até hoje permanecem abertas, principalmente na relação com os sérvios, historicamente os russos foram aliados dos sérvios”, relata o cientista político.

Ferraro ainda explica o incidente que Vida fala “queime Belgrado” no vídeo. “Causou um incômodo ainda maior do que o ‘Slava Ukraine’. Posteriormente, ele se desculpou pela saudação ucraniana e afirmou que a referência ‘queime Belgrado’ (“Belgrad, gori”) diz respeito a um restaurante de Kiev, chamado ‘Belgrado’, onde costumava comemorar as vitórias. Na gíria o termo significaria ‘agite Belgrado'”.

Zagueiro Vida comemora o gol marcado na partida entre Rússia e Croácia

A crescente de movimentos populista ultranacionalistas e de extrema direita é um fenômeno recorrente em quase toda a Europa. A crise imigratória pela qual o continente vem passando reforça a posição política dos grupos xenófobos. “A Croácia é hoje governada por um partido conservador, mas os grupos mais radicais não contam com representação no parlamento. Apesar de algumas polêmicas acerca do tratamento de imigrantes nas regiões de fronteiras, a política migratória croata é menos ‘agressiva’ do que a de países vizinhos, como a Hungria”, lembra Ferrero.

A parte oriental da Europa é marcada pelo conceito de Nacionalidade Étnica, e não Nacionalidade Cívica. Ou seja, a identidade nacional não está relacionada ao território, mas aos antepassados e laços culturais. Por exemplo, a Rússia não é um Estado-Nação, e sim um Estado Multinacional. Um checheno tem a cidadania russa (é um rossyanin), entretanto não é de nacionalidade ou etinia russa (não é um russkiy).

“Para nós brasileiros é difícil entender essa diferença, pois tanto rossyanin quanto russkiy são traduzidos como russo. No Brasil, predomina o conceito de nacionalidade cívica: se um casal de paraguaios atravessa a fronteira e tem um filho em território brasileiro, este será considerado brasileiro não apenas em questões de cidadania, mas também de nacionalidade”, fundamenta o cientista.

O impasse do leste da Europa é que alguns grupos radicais, associados às maiorias etnonacionais, querem uma política nacional de exclusão das minorias. E claro, a ascensão desses grupos é sempre vista com olhares de medo pelas minorias. A extinção dos estados multinacionais (URSS, Iugoslávia e Tchecoslováquia), e a formação de novos estados-nações com bases na etnia contribuem para a insegurança das minorias.

O nacionalismo étnico e o histórico recente de conflitos com os vizinhos sérvios e outras minorias no processo de dissolução da Iugoslávias são um dos fatores que permeiam esses focos. E também, existe o fato de uma das primeiras experiências da Croácia como unidade política independente dos demais eslavos ter se dado sob o domínio nazista. “O caldeirão étnico iugoslavo é também reforçado por clivagens religiosas: croatas católicos, sérvios ortodoxos e bósnios muçulmanos. Jogadores e torcedores sérvios e albaneses não deixaram de recorrer a provocações de cunho político”, lembra Ferraro.

Por mais que entidades esportivas, como a Fifa, proíbam manifestações políticas em seus eventos, é praticamente impossível separar a política do esporte. Para Nicolas Rocca Bragaia, Mestrando em Antropologia pela Unicamp, o futebol está inserido na sociedade, assim como a política, por isso, andam juntos. “A sociedade não vive em aquários separados. Não vive em núcleos que separam um do outro. Tudo está, de certa forma, inter-relacionado. Se formos pensar historicamente, temos mais exemplos de quando a política e esporte se misturaram do que ao contrário”.

Existe uma visão romantizada em relação ao futebol e ao esporte como um todo. A ideia de que esporte não é política e de que ele sempre promove a união das pessoas deve ser vista com ressalvas. Há inúmeros casos em que eventos esportivos foram utilizados como instrumento político ou deram alento a manifestações nacionalistas.

Nas Olimpíadas de 1936, em Berlim, Adolf Hitler aproveitou o evento para propagandear suas ideias nazistas. O ditador, que acreditava que a raça ariana era superior as outras, viu o norte-americano negro Jesse Owens vencer quatro medalhas de ouro no atletismo, principal segmento dos jogos na época. Mesmo assim, a Alemanha terminou as Olimpíadas em primeiro lugar no quadro geral com 33 medalhas de ouro.

Já nos jogos de 1980, em Moscou, outro ato político ganhou as manchetes dos noticiários. Devido a invasão soviética ao Afeganistão, o então presidente dos EUA Jimmy Carter anunciou que a delegação norte-americana boicotaria as Olimpíadas. Com isso, os jogos ficaram marcados como as Olimpíadas com menos participantes desde 1956, em Melbourne, na Austrália. Em 1984, foi a vez da União Soviética boicotar os jogos porque foram realizados em Los Angeles, nos EUA.

“O esporte pode servir para unir os jogadores em campo, como foi a partida entre Estados Unidos e Irã em 1998. Mas, também pode ser um canalizador de conflitos, como aconteceu no ano de 2014 na partida entre Sérvia e Albânia”, relembra Bragaia. Nessa última ocasião citada, em que só os torcedores locais podiam assistir ao jogo, um drone sobrevoou o estádio em Belgrado, na Sérvia, com uma bandeira da “Grande Albânia” escrito “Autonomia”. O atacante sérvio Aleksandar Mitrovic se exaltou e arrancou a bandeira, gerando irritação dos jogadores albaneses. A torcida única presente no estádio invadiu o gramado e a partida teve que ser paralisada.

Ao mesmo tempo, o futebol contribui direta ou indiretamente para a promoção de importantes discussões que não devem ser ignoradas. As manifestações machistas em relação a torcedoras russas geraram debates sobre questões de gênero em diversos países, inclusive na Rússia.

Caso a Croácia se sagre campeã na Rússia, existe um receio de que isso possa mexer na relação dos dois países, que foi conturbada durante bons anos. Entretanto, para Ferraro, do ponto de vista geopolítico isso é incogitável. “A Ucrânia, apoiada pela Croácia, não tem condições de afrontar a Rússia militarmente e o Ocidente não está disposto a ingressar num conflito direto com uma potência nuclear, o que resultaria em um ‘suicídio coletivo’. Além disso, até 1954 a Crimeia era parte da Rússia e sua população, de etnia majoritariamente russa, dificilmente aceitaria uma volta ao controle ucraniano”.

Vale mencionar que após a publicação do vídeo de Domagoy Vida, o Ministério de Relações Exteriores da Rússia recebeu diversas manifestações de croatas desculpando-se pelo ocorrido. O próprio Vida pediu desculpas públicas aos russos.

Sendo assim, não podemos determinar se os jogadores croatas são heróis ou extremistas.Em um país muito diferente do Brasil, com menos de 30 anos de existência, que viveu anos e anos de guerra, é comum que o sentimento patriota esteja mais aguçado. As memórias e cicatrizes dos conflitos e antagonismos étnicos ainda estão presentes.

Acompanhe a cobertura completa da Copa do Mundo pela Jovem Pan

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