Mauro Beting: O balé de Karius

  • Por Mauro Beting/Jovem Pan
  • 28/05/2018 11h13 - Atualizado em 28/05/2018 11h16
EFE O pedido de desculpas dele logo depois para a torcida que não deixa ninguém andar sozinho foi a melhor coisa que ele fez com as mãos

Há dois anos Bale não jogava o que jogou este mês. Havia três minutos ele só então entrara em campo no segundo tempo para entrar na história das finais da Liga com um gol espetacular do maior campeão do mundo. “Así, así, así, gana el Madrid”!

Na celebração do golaço que pode ser sua última partida pelo Real Madrid por tudo que não está rolando com ele, Bale mergulhou na grama como se tivesse feito a fama e deitado na cama. Enfiou a cara e a coragem na terra de Kiev como se cavando ainda mais o lugar dele e do primeiro tricampeão da Europa desde 1976.

19 minutos depois, Bale chutou uma segunda bola com raiva e efeito. O segundo defeito de Karius só não dá mas raiva que pena. No maior desafio da carreira, o goleiro alemão só não foi pior que… Que… Karius em Kiev, na decisão de 2018.

Virou meme instantâneo. Foi burro no primeiro gol. Foi frango no segundo. Maldade impura. Tristeza que imperou quando o apito terminou com o sonho do exército vermelho em Kiev. Karius se atirou como Bale no gramado. Em posição fetal, encolheu o corpo como havia encolhido o braço no magnífico primeiro gol de Bale. Colocou as mãos inseguras sobre a cabeça como se quisesse ao menos defender o que restara dele. Com o mundo caindo de graça ou de pau sobre ele.

A câmera aérea do estádio Olímpico sobrevoou até flagrar para o planeta, abaixo dela, o instante de dor e vergonha alheia do objeto inanimado e imóvel como pareceu no segundo tempo. Só havia um ser que sentia a dor desumana. A vontade de sumir como ele pareceu implodir na besteira inominável do primeiro gol infantil. A ideia de largar tudo como ele largou horroroso o terceiro gol juvenil. A camiseta cobrindo parte do rosto como ele não conseguiu cobrir a meta inglesa.

Lovren que tanto subira para dar o gol de empate para o incansável Mané era o companheiro também prostrado na grande área arrasada do Liverpool. Mas de costas para o gramado. De costas como todos os companheiros ficaram também para o isolado vilão da noite. O Sergio Ramos do Liverpool que vestia preto de luto.

Não se pode cobrar um atleta naquelas condições para consolar um colega no pior instante de sua carreira. Mas faltou uma mão amiga para o reerguer. Nem o admirável Jurgen Klopp. O cara que quando perdeu a Europa League em Basel para o Sevilla, em 2016, foi o primeiro a chacoalhar o grupo e dizer que logo eles lutariam por algo maior. Do tamanho do Liverpool. Com a dimensão do que conquistaram até a Ucrânia dois anos depois. Até as novas receitas do frango de Kiev.

Klopp que exige que cada atleta do seu time conheça o nome de todos os funcionários do seu clube. Cria um grupo que vira família. Mas que virou as costas para o goleiro que não se quer ver mais nem pelas costas em Anfield.

Nacho foi o primeiro companheiro de profissão que confortou o goleiro ainda com a cara enterrada na grande área. Asensio chegou logo depois. Os dois tentaram erguê-lo. Não conseguiram. Alguém da comissão técnica do Liverpool enfim o levantou. Justo quando o segundo algoz Bale tentava o abraçar. Karius mais uma vez não segurou a onda e saiu de lado. Arrasado. Como nenhum outro atleta no mundo naquela hora.

Salah chorava porque não tinha mais o que fazer aos 29 do primeiro tempo da melhor fase da carreira. Karius porque não fizera o que tinha de fazer no pior segundo tempo dele e de alguém numa final de Champions.

Depois, quando o palco para a 13ª festa campeã da Europa começava a ser montado no gramado, Karius foi em direção aos colegas de equipe. Com a gola levantada escondendo parte do rosto envergonhado. Ele então recebeu um e outro abraço. Dando força a um goleiro sabidamente fraco para ser do Liverpool. Mas não tão fraco para fazer o que não fez numa final de Liga. Tão ruim para expor tudo que há de pior numa falha humana.

Não sei o que será de Karius. Só sei que não pode mais ser no Liverpool. Torço para que um dia ele possa se recuperar. Para que ninguém o moleste mais do que as visões das falhas que serão perpétuas não o imolem ainda mais.

O pedido de desculpas dele logo depois para a torcida que não deixa ninguém andar sozinho foi a melhor coisa que ele fez com as mãos. As outras duas boas defesas no jogo já tinham sido esquecidas. As duas tenebrosas falhas não têm como.

Só torço para que a família possa defendê-lo como ele não soube fazer com o time dele. Ninguém merece tamanha dor por causa de algo que o maior mito do Liverpool bem definiu antas de tudo. Palavra do ex-treinador dos Reds, o messiânico Bill Shannkly: “o futebol não é uma questão de vida ou morte. É muito mais do que isso”.

Que seja, Karius.

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